Uma estagiária do FBI deve conquistar a confiança de um psicopata para capturar um serial killer e salvar sua mais recente vítima antes que ela seja morta e esfolada. Esta história de suspense tornou famoso o psiquiatra e canibal Hannibal Lecter, um dos vilões mais assustadores da literatura e do cinema.
A história é baseada no livro O Silêncio dos Inocentes (1988), de Thomas Harris. Harris já havia apresentado o personagem no romance Dragão Vermelho (1981), e voltou a ele nas sequências Hannibal (1999) e Hannibal – A origem do mal (Hannibal Rising) (2006). Todos os livros foram transformados em filmes, sendo que este último teve duas versões no cinema, em 1986 e 2007.
Hannibal Lecter é um psiquiatra brilhante e também psicopata e canibal. No último livro é explicada a origem de sua fixação pelo canibalismo, devido a eventos traumáticos de sua infância e juventude, durante e após a II Guerra. Tanto em Dragão Vermelho quanto em O Silêncio dos Inocentes ele está preso e é consultado para ajudar na captura de outros serial killers.
Neste livro o FBI está à caça do assassino conhecido como Buffalo Bill, que mata e esfola suas vítimas. A estagiária Clarice Starling é incumbida por seu chefe, Jack Crawford, de entrevistar Lecter e tentar ganhar sua confiança para que ele ajude a descobrir a identidade de Buffalo Bill.
“O herói parte do mundo cotidiano e entra em uma região de maravilhas sobrenaturais: forças fabulosas são descobertas e ele deve conquistar uma vitória decisiva: o herói retorna dessa aventura misteriosa com o poder de conceder dádivas a seus companheiros.” (introdução de O Herói de Mil Faces, Joseph Campbell)
Clarice é um aprendiz que parte em uma missão difícil: ela deve enfrentar o desconhecido (Dr Lecter, que também atua como o mentor do herói) para conquistar uma vitória decisiva, ou seja, derrotar Buffalo Bill (Jame Gumb) e salvar a donzela (Catherine Martin). Ao retornar, ela recebe honras (se torna agente do FBI) e pode ajudar seus companheiros, ou seja, proteger a sociedade contra o mal.
O monomito é simbolizado de forma brilhante nas diversas etapas da história: o momento em que Clarice entra no calabouço do hospital psiquiátrico para encontrar-se com Lecter simboliza a entrada no mundo desconhecido e sobrenatural. Ela recebe ajuda de um mentor e deve enfrentar seus fantasmas, o que acontece durante os diálogos com o psiquiatra canibal. No momento do desafio final, ela está sozinha e deve descer ao abismo (o porão de Gumb) para enfrentar o perigo e derrotá-lo.
Lecter e Clarice têm seus momentos mais brilhantes nos diálogos da prisão, em que ela tenta controlar seu medo e insegurança e ele tenta descobrir seus segredos e traumas de infância, como moeda de troca para as informações das quais ela precisa.
“Quando ele voltou a falar, seu tom era suave e agradável.
– Você gostaria de me analisar, policial Starling. Você é muito ambiciosa, não é? Sabe o que você me parece, com sua bela bolsa e seus sapatos baratos? Parece uma caipira. Uma caipira melhorada, limpa, com um pouco de bom gosto. Seus olhos são como pedras baratas do mês – tudo é brilho superficial quando você consegue uma pequena resposta. E por trás delas você é brilhante, não é? Desespera-se para não ser como sua mãe. Uma boa nutrição deu-lhe ossos mais longos, mas você não está fora das minas há mais de uma geração, policial Starling. Você é dos Starlings de West Virgínia ou de Oklahoma? Houve uma decisão de cara-ou-coroa entre a universidade e o Corpo Feminino do Exército, não houve? Vou lhe dizer algo específico sobre você mesma, estudante Starling. No seu quarto você tem um colar de ouro de contas soltas, e sente um choquezinho desagradável quando vê como agora se tornaram sem graça, não é verdade? Tantos cansativos agradecimentos vida afora, tantas mesuras e hesitações, banalizando cada uma daquelas contas. Cansativo. Cansativo. Te-e-edioso. Ser inteligente estraga uma porção de coisas, não é verdade? E ter bom gosto não é bom. Quando você pensar sobre esta conversa, vai se lembrar do estúpido animal ferido no rosto quando você se livrou dele. – E no mais suave dos tons, o Dr. Lecter acrescentou: – Se o colar de contas se tornou sem graça, o que mais perderá a graça no curso da sua vida? Você cisma com isso, não é, durante a noite?
Starling levantou a cabeça para encará-lo.
– O senhor enxerga longe, Dr. Lecter. Não nego nada do que acabou de dizer. Mas eis uma pergunta que está me respondendo agora mesmo, quer queira quer não: O senhor tem energia suficiente para voltar essa sua percepção de alta potência em direção a si mesmo? É difícil encarar isso, descobri nos poucos últimos minutos. O que é que o senhor acha? Questione-se e revele a verdade. Que assunto mais adequado ou mais complexo poderia encontrar? Ou será que tem medo de si mesmo?
– Você é uma pessoa dura, não é, policial Starling?
– Razoavelmente, sim.
– E odiaria pensar que é uma criatura comum. Isso não iria feri-la? Por Deus! Bem, você está longe de ser comum, policial Starling. Mas tem medo de sê-lo. De que tamanho são as contas do seu colar, sete milímetros?
– Sete.
– Deixe-me fazer uma sugestão. Arranje algumas contas olho-de-tigre avulsas e enfie-as alternadamente com as contas de ouro. Você poderá querer colocar duas-para-três ou uma-para-duas, conforme lhe parecer melhor. As contas olho-de-tigre vão refletir a cor dos seus olhos e os reflexos de seu cabelo. Alguém já lhe mandou um presente de namorado?
– Claro.
– Estamos em junho. O Dia dos Namorados está a apenas uma semana. Bem, você está esperando algum presente?
– Nunca se sabe.
– Não. Nunca se sabe… Eu tenho estado a pensar sobre o Dia dos Namorados. Ele me lembra algo engraçado. Agora que estou pensando nisso, ocorre-me que eu poderia torná-la muito feliz no Dia dos Namorados, Clarice Starling.
– Como, Dr. Lecter?
– Mandando-lhe um maravilhoso presente. Terei que pensar nisso. Agora, por favor, dê-me licença. Adeus, policial Starling.
– E o estudo?
– Um recenseador tentou avaliar-me certa ocasião. Comi o fígado dele com favas e um grande vinho. Volte à escola, pequena Starling!
Hannibal Lecter, educado até o último momento, não lhe voltou as costas. Foi recuando da barreira para trás até chegar ao seu leito e, deitando-se, ficou tão alheio a ela como um cruzado de pedra esticado em sua tumba.”
O livro segue com um suspense crescente e narrativa ágil e detalhada, conforme Starling e Crawford seguem as pistas que Lecter sutilmente deixa escapar, mas mesmo assim exigindo lógica e raciocínio para serem decifradas.
“Starling estudara psicologia e criminologia numa boa escola. Durante a vida pudera observar algumas das horríveis e precipitadas formas com que o mundo destrói as coisas. Mas realmente não tinha jamais imaginado que às vezes os seres humanos produzem, atrás de um rosto com aparência humana, uma mente cujo prazer era aquilo que jazia na mesa de porcelana em Potter, West Virgínia, na sala forrada de papel decorado com rosas. Seu primeiro encontro com uma mente daquele tipo chocou-a mais do que qualquer coisa que pudesse ver em mesas de autópsia. Tal conhecimento ficaria entranhado na sua pele para sempre, e ela sabia que tinha de criar uma crosta ou aquilo a penetraria.”
Jame Gumb, o serial killer que retirava a pele de suas vítimas, foi criado a partir de quatro assassinos reais: Ed Gein (que fazia roupas com a pele de suas vítimas; ele também foi a inspiração para a criação de Norman Bates, de Psicose), Ted Bundy (que oferecia dicas psicológicas para ajudar a capturar outros assassinos) e Gary Heidnik (que mantinha as vítimas em seu porão).
Filme
A versão cinematográfica deste livro, dirigida por Jonathan Demme (1991), foi o terceiro filme a conquistar os cinco prêmios principais: Melhor Filme, Direção, Melhor Roteiro (adaptado), Melhor Ator e Melhor Atriz. Até então, somente Aconteceu naquela noite (1934) e Um Estranho no ninho (1975) haviam conseguido essa façanha.
Demme acertou na escolha do elenco: Jodie Foster (Clarice) mostra “a força e a determinação necessárias para o papel” (conforme Demme) ao mesmo tempo em que transmite seu drama interno, especialmente nas cenas com Lecter. Com este papel ela ganhou seu segundo Oscar e mais seis outros prêmios.
Ted Levine (Jame Gumb), apesar de não tão aclamado quanto Hopkins, também criou um vilão complexo e sutil; ele não é um gay ou travesti, mas uma mente atormentada que deseja ser sua mãe para, de certa forma, trazê-la de volta. A cena da dança causou controvérsia entre a equipe de produção, mas Ted insistiu em fazê-la, para mostrar ao público como o personagem se sentia em relação a si mesmo.
A interpretação magistral de Anthony Hopkins criou um Lecter educado, com boas maneiras, voz baixa; um contraste com seus feitos e com seus companheiros de prisão. No livro sua cela tem grades, mas os produtores decidiram usar uma grossa parede de plexiglas com furos (aproveitados na interpretação de Hopkins), que aumentou a sensação de proximidade e a tensão das cenas. Seus 17 minutos em cena foram a interpretação mais curta a ganhar o Oscar de Melhor Ator. Merecido.

E aí, vai encarar?
O filme procura mostrar o ponto de vista (literalmente) de Clarice, para criar uma identificação entre o público e ela. Hannibal e outros personagens olham diretamente para a câmera quando falam com Clarice, e quando ela responde, olha para um ponto ligeiramente afastado do centro da câmera. Esse recurso intensifica o suspense nas cenas entre Jodie Foster e Anthony Hopkins, com uso de vários close-ups que tornam o personagem dele ainda mais assustador. Por breves instantes no final, já no porão, o ponto de vista da câmera muda para Jame Gumb, o que torna a cena ainda mais tensa.
Jonathan Demme também usa alguns recursos de Hitchcock, como mostrar a identidade do vilão para o público, sem que o personagem saiba disso. Isso funciona muito bem para criar o suspense; um exemplo é a sequência da invasão da casa à procura de Jame Gumb. Os cortes e a ação simultânea confundem o espectador e aumentam o efeito da revelação. Edição de gênio!
Apesar de ser uma história sombria e assustadora, há poucas cenas de violência gráfica; o que assusta são os fatos, não o que é mostrado. Ainda assim, em uma sequência temos o canibal em ação, pois além de ser necessário para o desenvolvimento da trama, não devemos esquecer que aquele gentleman é na verdade um monstro assassino.
Filme e livro são excelentes; uma história muito bem contada, com simbolismos e personagens complexos, interpretada e dirigida com maestria, e que certamente mereceu todos os prêmios recebidos. Recomendadíssimo!
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Para saber mais:
- Página do filme no IMDb
- O Silêncio dos Inocentes (livro) na Wikipedia (em inglês)
- Símbolos e Mitos no filme O Silêncio dos Inocentes – Olavo de Carvalho
- O monomito ou jornada do herói, na Wikipedia (em inglês e português)
- Lista de histórias que são monomitos
- Silêncio dos inocentes é inteirinho sobre Clarice – ótima análise do filme, da Lola
Trailer – O Silêncio dos Inocentes
httpv://www.youtube.com/watch?v=ZWCAf-xLV2k